Crescer com a Revolução em casa

Quando o Hugo me desafiou para escrever no seu blog eu não pensava que este exercício de falar sobre a revolução fosse tão difícil. Apesar de só ter nascido na década de 80 muito cedo me foram incutidos os valores da revolução de 1974. Fará hoje 47 anos que um grupo de militares, homens e rapazes, decidiu acabar com uma ditadura que perdurava há 41 anos, libertando uma sociedade marcada pela guerra e pela desigualdade. Antes do 25 de Abril havia uma guerra para manter um império que nunca nos pertenceu, não havia liberdade de expressão, não havia direito ao voto livre, não havia direito à saúde, não havia escolaridade obrigatória, não havia pensões de reforma ou direito a férias. Acho que as pessoas hoje em dia não entendem bem o que era a sociedade antes do 25 de Abril nem os benefícios que ele nos trouxe, e talvez por isso se veja um crescimento preocupante de movimentos saudosistas da sociedade de outrora. Hoje decidi não vos falar do que mudou na sociedade em geral mas contar-vos como eu cresci com pessoas que lutaram para que esta revolução se fizesse e que para sempre mudaram o rumo de Portugal. Vou falar-vos sobre duas pessoas que me moldaram como indivíduo e me fizeram crescer com exemplos de liberdade, talvez o maior feito da revolução.
O meu Avô Zé Felipe sempre foi uma personagem misteriosa e muito calada, passava os dias a ler na sua cadeira, tinha uma cultura enorme e invulgar mas de difícil acesso, sobretudo para os meus poucos anos. Quando era criança, sempre passei muito tempo com ele e com a minha avó, ia para casa deles depois da escola. Gostava principalmente de lá ir almoçar, havia sempre um bife à minha espera… Todos os dias depois do almoço o meu avô Zé Felipe se levantava e passava uma hora de um lado para o outro do corredor, e eu não conseguia perceber muito bem o porquê deste ritual. Um dia perguntei-lhe o porquê de ele não ir passear lá fora. Ele parou, sentou-me no colo e contou-me algo que mudou para sempre a minha maneira de o olhar. Nesse dia ele explicou-me que há muitos anos tinha sido preso pela polícia política e que nesse tempo de prisão tinha começado a fazer certos exercícios para que a sua cabeça não ficasse também ela presa: para além de educar os outros presos, na maioria camponeses, com aulas de matemática e francês, outro dos exercícios que ele começou a fazer foi o de dar passeios na pequena cela onde estava encarcerado. Praticou tanto tempo este exercício que mesmo depois de libertado ele continuava a repetir exactamente os mesmos passos que dava na cela. Mais tarde perguntei-lhe o que tinha feito para ter sido preso e ele contou-me que na altura teria sido acusado de pintar uma parede com desenhos contra a ditadura. Juntando a isso o facto de já estar referenciado por ser conotado com uma certa cor política, condenaram-no a mais de três anos de pena. Três anos por pintar uma parede é um pouco excessivo, poderão vocês pensar, mas os tempos eram bem outros…
Talvez pela influência do meu avô, o meu pai, Mário, desde muito cedo se interessou por política, tendo-se filiado no Partido Comunista Português muito cedo, juntando no seu armário revistas de quadradinhos com exemplares do jornal Avante que ele distribuía por Lisboa. Naquele tempo, como todos os jovens, foi chamado para a tropa, mas apesar de ter tido treino de operações especiais nunca foi para a guerra colonial, ficou destacado no então chamado Depósito de Indisponíveis na Graça em Lisboa e depois destacado para o Estado-Maior do Exército. Por essa altura estava já delineado o plano que viria a ser conhecido pelo Movimento dos Capitães e que mudaria para sempre a nossa história. Reuniões clandestinas, manobras de diversão para manter secreto o objectivo de derrube da ditadura, coordenação entre os envolvidos nos vários ramos das Forças Armadas e uma determinação e coragem de levarem a bom termo a madrugada libertadora de 24 de Abril, apesar de todas as probabilidades e incertezas de um insucesso que lhes custaria caro. Apesar de tudo isso, o meu pai viveu, nela participando activamente, essa madrugada como se fosse o último dia da sua vida. E esse plano teve a ajuda de um elemento inesperado, ou talvez não, teve a ajuda de um povo que estava amordaçado há muito tempo e que logo se juntou a estes homens e os ajudou a levar a bom porto esta iniciativa. Para ele o 25 de Abril foi o dia mais feliz da sua vida, tanto que muitas vezes penso que ele viveu tão intensamente esses tempos que ainda hoje lá está um pouco, a viver um sonho de um eterno romântico que irá para sempre lutar pelos ideais em que acredita, mesmo sendo eles um pouco irreais para a sociedade em que vivemos hoje em dia.
Todos os anos lhe ligo, mesmo estado longe, para agradecer por ter participado na revolução e ouvir as mil e uma histórias que ele conta desses tempos. São quase filmes feitos por algum estúdio de cinema mas acima de tudo gosto de ver o brilho nos olhos que ele tem quando as conta, o orgulho de ter feito algo que para sempre mudou o rumo do nosso país e das nossas vidas.
Gostou do que leu? Então, ajude-me a crescer seguindo este Blog e partilhando nas redes sociais!
#25deAbril1974; #RevoluçãodosCravos; #PoliticaPortugal; #ActualidadePolitica; #SociedadePortugal; #DemocraciaParticipativa