“Mais importante que o destino é a viagem”
Quando o Hugo me desafiou a escrever sobre a maneira “diferente” como se tem construído a minha carreira em medicina, não hesitei em aceitar.

De facto, em Portugal, para quem decidiu estudar medicina, e que com isso investiu tanto do seu tempo, energia e foco em anos cruciais da juventude, é ainda difícil compreender quando se muda o rumo e não se faz necessariamente aquilo de que todos estão à espera num médico: ver doentes ou fazer cirurgias.
É uma pergunta que as pessoas me continuam a fazer, e sei que há por aí muitos jovens a interrogarem-se sobre as escolhas que terão de fazer no seu futuro, portanto é um assunto sobre o qual importa falar, partilhar testemunhos e com isso esperar conseguir ajudar a alargar horizontes. Afinal, nós somos as nossas decisões, e não é a experiência prévia que deve rotular o trajeto que se faz. Somos livres de mudar para nos continuarmos a sentir felizes e realizados, alinhados com o nosso propósito, e este pode perfeitamente mudar ao longo da vida. Nada está escrito na pedra!
Se o Hugo me tivesse pedido este testemunho na altura em que nos conhecemos, na “velha” Novartis da Beloura em 2008, a minha resposta teria sido bem diferente de hoje. Uma das coisas mais maravilhosas da vida é que raramente conseguimos ver para além da próxima curva do caminho…. Mesmo quando temos planos definidos, a vida encarrega-se de nos colocar na frente situações ou pessoas que nos levam a descobrir novas dimensões de nós mesmos, a re-orientar as velas e a embarcar em aventuras que nunca havíamos considerado, que nos vão apresentando realidades que não equacionávamos antes, ou perspetivas novas sobre um mesmo assunto que víamos com as lentes que tínhamos na altura, que idealizávamos sem conhecimento de causa.
O início de tudo
Quando escolhi Medicina, e mais tarde a especialidade de Medicina Geral e Familiar, fi-lo com um total desejo de poder dedicar-me à prática de uma medicina de proximidade, de medicina que não olhasse apenas um órgão ou sistema mas todo o organismo, e que permitisse não apenas observar pessoas doentes mas poder atuar na prevenção e promoção da saúde. Outra coisa interessante e bonita na especialidade é a possibilidade de seguir pessoas ao longo das diferentes etapas da sua vida, desde a conceção até à morte e mesmo depois desta. No entanto, a realidade com que me deparei era bastante diferente, e ao terminar a especialidade em 2007 fui confrontada com uma reforma dos Cuidados de Saúde Primários e com a necessidade de “tapar buracos” no sistema; portanto a ideia de praticar a tal medicina de proximidade e individualizada que tanto me apaixonava na Medicina, de ter tempo para escutar os doentes e poder equilibrar tudo isso com o meu projeto de vida não foi exatamente aquela que encontrei no terreno. Ao mesmo tempo, fui contactada por um head hunter, que me falou pela 1ª vez do conceito de “medicina farmacêutica”, algo de que eu nunca ouvira falar ou considerara como uma hipótese de carreira; e como ainda não tinha assinado um contrato de assistente, não tinha responsabilidades familiares e tinha tudo a ganhar, fiz aquilo que faço sempre nas minhas tomadas de decisão perante possíveis mudanças: escolhi o desafio desconhecido, que me permitia crescer, adquirir mais competências e adicionar novas ferramentas à minha formação específica.
Navegar os desafios
Decidi dar-me 6 meses para “ver como era”, pois sempre gostei de investigação clinica que era uma das vertentes muito pouco aplicadas em Cuidados de Saúde Primários e em contraponto, muito fortes em medicina farmacêutica, e aí fui eu. Mudança de 180º que me obrigou a reaprender tudo o que eu não aprendera ainda em 23 anos de formação contínua!! O início foi tão duro quanto fascinante, mas na Novartis encontrei uma verdadeira escola e conheci pessoas que me deram as ferramentas certas para iniciar esta nova viagem num registo tão diferente da anterior. Nunca esquecerei a minha primeira manager, que me ensinou verdadeiramente a encontrar-me no novo mundo de medical affairs.
Foram tempos felizes em que aprendi muito sobre trabalho de equipa, sobre gestão de tempo, sobre comunicação, sobre marketing, sobre o mundo corporativo.
Depois veio a aventura seguinte, na qual tive de decidir tirar o pezinho que ainda mantinha na clínica (mas infelizmente o dia só tem 24 horas e eu já estava a esticar a corda…). Aqui também tive a sorte de encontrar colegas que foram para mim modelos de referência; mais uma vez o meu manager foi um mestre, um verdadeiro mentor que pelo seu exemplo, me ensinou imenso sobre a ética da função médica no meio empresarial, sobre liderança, sobre estar ao serviço dos outros, o que me fez ponderar e aceitar o desafio seguinte – liderar uma equipa, um salto quântico em termos profissionais, pois enquanto trabalhava com as pessoas, com as suas necessidades, as suas limitações, as suas particularidades, aprendi ainda mais sobre mim mesma.
E depois fui mais uma vez desafiada para outra mudança – liderar todo um departamento médico, composto por funções de grande responsabilidade e altamente heterogéneas, em que sucedi a um homem bastante experiente e era mais jovem do que todas as pessoas que iria liderar. Nessa fase aprendi muito sobre resiliência, sobre inteligência emocional, sobre a solidão de ser líder, sobre negociação, sobre a infinita sabedoria de escutar e esperar e aprendi que mais importante do que atender às expectativas dos outos, é fundamental atender às nossas para que nos mantenhamos coerentes e felizes.
Nesta empresa, em que hoje me encontro, vieram os mais recentes desafios: primeiro um cargo de âmbito ibérico, mas em que Espanha ocupa 95% do volume de trabalho e da importância estratégica (e lá fui acrescentar a aprendizagem do espanhol à minha ‘mala de ferramentas’), e mais recentemente um cargo global. Esta última mudança foi a mais desafiante de todas, porque decorreu em plena pandemia, em ambiente 100% virtual e quando acabava de sair de uma licença de maternidade! Lá fui eu mais uma vez, com o insubstituível apoio de quem tenho em casa (pois estas coisas não se podem fazer a sós, é preciso uma aldeia…) e mais uma vez cheia de curiosidade sobre o que viria a seguir – outro ritmo, outro nível de responsabilidade, imensa heterogeneidade cultural, fusos horários… um novo universo, todo do outro lado do meu terminal de computador e sem sequer ter de sair de casa!
De repente, olho para trás e passaram 13 anos! Que viagem!
É importante dizer que este tempo não foi apenas de trabalho, embora tudo seja muito intenso e estejamos sempre envolvidos em projetos que nos requerem muita entrega. Mas as várias etapas da vida pessoal e familiar foram-se construindo e entrelaçando nos diversos desafios profissionais, tendo eu percebido que tudo está conectado, não dá para ter as coisas separadas em departamentos estanques se queremos tudo da vida, nomeadamente no papel de mulher, de mãe e de profissional.
Ser médica no mundo corporativo
Hoje continuo a sentir que a decisão que tomei há 13 anos foi um dos melhores saltos no “vazio”. Na altura, houve até colegas que me acusaram de passar para o “outro lado”, como se houvesse aqui fações antagónicas, e não pessoas a trabalhar conjunta e articuladamente para um bem comum, que é o da saúde, como tanto se tem demonstrado nos últimos tempos a propósito do combate à pandemia. Todos somos necessários, nas várias funções que desempenhamos, para fazer o mundo andar em frente, e mais velozmente em alturas críticas nas quais isso se torna a diferença entre viver e morrer.
Tem sido um caminho lindo, carregado de aprendizagens e que me possibilitou olhar a medicina de uma outra perspetiva, não tratando doente a doente, mas criando pontes entre a investigação e os profissionais de saúde, impactando de forma muito positiva a prática clínica sobre um grande número de doentes, prolongando a vida e a qualidade desta, melhorando os indicadores de saúde e a qualidade de prática da medicina, isto sendo sempre a provedora do doente em qualquer que seja o contexto onde me encontre. Porque em primeiro lugar sou médica e a minha primeira preocupação são os doentes.
Um aspeto altamente diferenciador de ser médica e trabalhar na Indústria Farmacêutica é que entendemos aquilo que é o centro de todo o trabalho que se desenvolve: falamos a linguagem dos profissionais de saúde, e mais importante ainda, a linguagem dos doentes. Trazemos para o mundo empresarial o conhecimento adquirido no terreno, e isso é muito importante porque nos cabe a tarefa imensa de ajudar a encontrar os medicamentos certos para os doentes certos, educando todos os intervenientes sobre patologias e mecanismos de ação terapêutica, e com isso atingir o fim último de curar, ou tratar, e de preferência dar mais qualidade de vida e mais tempo de vida aos doentes.
Adicionalmente, a principal vantagem de ter como base uma especialidade abrangente como a MGF é a flexibilidade que isso nos confere de poder rapidamente adaptar-nos a qualquer área terapêutica, porque a base já lá está. Podemos “apagar incêndios” quando é preciso, mas também temos a visão holística e integrada de tudo, o que em termos estratégicos é uma mais-valia.
Finalmente, o melhor conselho que posso dar a quem esteja agora a começar é o seguinte: aproveitar um dia de cada vez, olhar tudo como uma oportunidade para melhorar, dar-se tempo para aprender e ter paciência consigo próprio, acreditar na nossa capacidade de definir o mapa do nosso caminho. E as coisas vão fluindo!
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